quinta-feira, 2 de abril de 2009

A filosofia e o que queremos


Esse texto surgiu em 2008 como um diálogo com o professor José Sílvio de Oliveira que havia proposto um debate a partir da versão inicial de seu chamado "Considerações sobre o conhecimento filosófico" ( O link aqui vai para uma versão final que é assinada em conjunto com Náfren Ferreira Lima). O debate não ocorreu. Fiz meu texto e lhe enviei uma cópia. Ele agradeceu e não respondeu.

Apesar da ausência do texto que o incitou (o que faz com que alguns exemplos pareçam, que retomam argumentos do professor Sívio soltos), acredito que ele sobrevive por si só e pode servir para mais debates/diálogos. Pena que o professor Sílvio não respondeu ao meu chamado para o diálogo e parece ter ignorado minhas objeções. Sim, retirou do texto uma parte que estava confusa, mas que abria espaço para uma referência filosófica a partir da cultura pop (uma canção do Skank, como cito) e trechos em que falava da necessidade de diferenciar o porco do leitão (enfim, uma defesa de fronteiras e limites). Seu texto ficou mais acadêmico, mas, acredito que, por arriscar menos, tornou-se também menos útil. Quiça sua resposta ainda surja...




Marcos Carvalho Lopes
(marcosclopes@gmail.com)


Relutei um pouco em escrever algo sobre o texto do professor José Sílvio de Oliveira por não ter muita certeza obre a utilidade do debate a partir de perspectivas teóricas que possuem pressupostos distintos. Deleuze mesmo, autor utilizado por José Silvio, achava o debate inútil: se você quer construir o seu “sistema” perderia tempo com discussões[1]. Por outro lado, o confronto de idéias sempre teve dentro da história da filosofia um papel fundamental. O problema para mim é saber até onde é possível o diálogo e onde começa o debate infrutífero: quando nos identificamos com o interlocutor tentamos construir um caminho de coerência entre as posições por ele defendidas e as nossas, nós aproximamos de suas teses com simpatia para, posteriormente, assinalar nossas diferenças; quando tomamos o outro como diferente, buscamos mostrar como sua perspectiva corromperia a educação das criancinhas ou destacamos suas contradições lógicas.[2] A pedagogia que sacraliza o diálogo não leva em conta a indiferença e o silêncio, assim como, o aspecto pragmatista desse tipo de discussão. Infelizmente, nem sempre o diálogo é possível (na maioria das vezes, na “filosofia brasileira”, diria que o diálogo é impossível) e por vezes é uma simulação. Precisamos ampliar as possibilidades de conversação e deixar de ser tão cordiais[3].

Para o professor José Sílvio de Oliveira a transformação que a filosofia poderia produzir estaria na criação de conceitos, que trouxessem consigo uma mudança em nosso modo de descrever a realidade. O assombro filosófico se traduziria então em termos poéticos, metáforas que gerariam sentidos e formas de vida transformadas.

Essa é uma visão romântica do papel da filosofia, que traz consigo a passagem da experiência para a linguagem como foco do filosofar. O filósofo Richard Rorty, em seu último texto, publicado postumamente, reafirmava que no coração do romantismo estaria a “afirmação de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.”[4] A perspectiva do professor José Sílvio, inspirada em Deleuze e Guatarri, de que filosofia é criação de conceitos me agrada em seu romantismo, mas, parece também não abarcar todas a variedades de coisas que os filósofos fazem. Alguns filósofos podem ser úteis “limpando o terreno” para o surgimento de novas formas de vida: jogando fora o lixo de conceitos inúteis.

Não acredito que a filosofia possa mesmo ser descrita em termos de sua natureza. Essa busca por essências me parece um tanto tediosa. Encontro de início um problema nos termos que guiam essa investigação, que apontam para certo platonismo, na tentativa de encontrar a realidade como ela é. Essa visão privilegiada que a filosofia geralmente procurou alcançar, parece mesmo ser seu sintoma: a tentativa de superar seu contexto imediato, colocando-se fora do mundo, e, então, julgar o mundo a partir de um ponto de vista privilegiado. Seria a tentativa de alcançar a perspectiva de um “olho de deus”, como disse Hilary Putnam, o contexto para além de qualquer contexto.

É verdade que José Sílvio critica a idéia de que a filosofia seria uma fuga da realidade cotidiana, mas também reafirma dualismos tradicionais como corpo-alma, ideal-real, matéria-forma, teoria-prática. A aceitação desses dualismos traz consigo grande carga metafísica e permite ao autor enunciar a pretensão de possuir “o verdadeiro sentido da filosofia”. A tentativa de possuir a chave mágica que permitiria separar aparência e realidade surge no texto de José Sílvio no uso que este faz de Horkheimer. O uso da teoria crítica aí não se equilibra com o uso da perspectiva deleuziana. A crítica a instrumentalização da cultura não me parece que poderia andar de mãos dadas com a radicalização desse movimento, na tentativa de descrever a filosofia como criadora de instrumentos (conceitos) para a redescrição da ‘realidade’. A dialética negativa da teoria crítica e a antidialética deleuziana trazem pressupostos distintos. Não se pode assumir uma posição poética e romântica e, ao mesmo tempo, tentar manter o “lugar privilegiado de juiz e fundamentador de toda cultura”.

É preciso levar mais a sério o jogo de espelhos descrito por Michel Foucault que pergunta como um discurso pode denunciar a ideologia sem fazer ele mesmo parte da ideologia. O problema para a teoria crítica (e acredito que isso vale também para Deleuze) é ter tomado como herança nietzscheana a descrença em qualquer projeto de emancipação liberal, ou seja, não se alinham na defesa de qualquer projeto como o da democracia. Para Horkheimer e Adorno o avanço do iluminismo solapou qualquer idéia de “racionalidade” ou “natureza humana”, apontando para a destruição do sujeito moderno, como conseqüência disso, pensava que a sociedade liberal havia perdido qualquer possibilidade de fugir do caráter auto-destrutivo do iluminismo. Este beco sem saída da velha Escola de Frankfurt pode ser descrito em perguntas sobre “como podemos pensar pela experiência, se admitimos que todos nós estamos imersos na reificação? Como saberemos que não estamos falando de uma pseudo-experiência, se nós mesmos, em filosofia, nos convencemos que a experiência foi empobrecida de um modo que ninguém teria, hoje, condições de vivê-la plenamente?”[5].

Para José Sílvio produzir novos conceitos seria um caminho para criar alternativas. Mas como saber se estamos criando metáforas úteis ou apenas levando mais e mais a filosofia pro-fundo? Acredito que deveríamos abandonar essa tentativa de chegar a um contexto fora de qualquer contexto, numa perspectiva vertical, e buscar algum caminho que rime com a democracia que queremos construir. .

A guerra entre filósofos e poetas sempre nos prega novas peças: combate interminável entre Parmênides e Heráclito pela substância sempre acena novos rounds. Entre Searle e Derrida, Habermas e Foucault, Eco e Rorty etc. Talvez a única coisa que una nomes que possuem obras tão diferentes como Carnap e Deleuze seja o de lidar com problemas que remetem a textos de Platão e/ou Kant. O privilégio de dizer o que é a filosofia parece ser uma pretensão mais teológica e dogmática do que dialógica e aberta.

Quando a pergunta pelo ser toma a direção de responsabilidade de pensar “o que queremos de nós mesmos”, “que tipo de sociedade queremos ajudar a construir”, tomamos inegavelmente uma posição profética, como aedos (poetas) que cantam um dever-ser.[6] Acho que nesse ponto me aproximo novamente da descrição feita pelo professor Jose Sílvio: cantamos o novo em filosofia da educação, embora sem ter muita certeza de que alvo é este ou de como alcançá-lo. Aí tropeçamos entre o que há de infantil na poesia e o que há de morto na prosa.

Neste Novo Mundo a utopia parece ser um dever, e se temos novas idéias e não sabemos fazer canções, devemos argumentar, no jogo de pedir e dar razões. Filosofia pode ser saber fazer distinções, assim como, pode ser fazer contorção, criar sínteses estranhas: perceba, a paisagem é o cerrado e tudo se contorce. O que é é, e o que não é não é, mas o que queremos? A vontade pode até ultrapassar o entendimento na construção do dever-ser, mas, eis aí que o que é deixa de ser e surge o novo. O cerrado gosta do fogo. A responsabilidade do limite é tarefa da socialização, mas se queremos dar asas para a imaginação de modo romântico e poético, devemos dar abertura e receber a criatividade que gera vínculos inéditos e faz leituras não-usuais. Para que Deleuze e Adorno possam conviver no mesmo quadrado é preciso deixar de lado a lógica e pensar mais no que queremos fazer e criar, a partir deles, outro horizonte. José Sílvio tenta inventar sua posição partindo de uma frase de Marx, outra de Piaget e um verso de canção da banda mineira Skank: aí ele não se interessa por ficar preso ao que cada um diz “em si mesmo”, mas em multiplicar possibilidades e criar alguma possível síntese. No final das contas, a diferença entre porco e leitão só é relevante em determinados contextos: quando estou com fome e quero comer um X-bacon nunca penso em tal diferença.[7] Diferenças que não fazem diferença na prática são lixo simbólico que devemos jogar fora para abrir espaço para o novo que almejamos, para a democracia que é a promessa em nosso horizonte.



[1] “As discussões, para dizer o mínimo, não fazem avançar o trabalho, já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa. (...) Não estamos nunca em um mesmo plano. Criticar é somente constatar que um conceito se desvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é posto em um novo meio.” DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. O que é um conceito? Em O que é filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. citado por CABRERA, Julio. “Por qué no agrado a los rebeldes.” In: Philosophos- v1, n.1/2, 1996. p.127 ( Citado em espanhol, tradução minha). ^voltar ao texto

[2] Numa resenha de 1987 para o livro de Habermas O discurso filosófico da modernidade, Rorty sugere uma espécie de tipologia para dividir as formas de crítica que qualquer filósofo original enfrenta. Haveria os críticos de terceira fila que buscam desqualificar o autor acusando-o de frivolidade intelectual ou de corromper a juventude; os críticos de segunda fila tomam o analisado em contraponto com o filosofar tradicional, e o julgam de maneira literal e estrita, acusando-o de ambigüidade no uso dos termos ou de enunciar conclusões vagas; por fim, haveria os críticos de primeira fila, que procuram entender as motivações e esperanças que levam o filósofo a tomar um caminho original, procurando considerar de forma holística sua obra, para, por fim, apontar em quais aspectos consideram que o autor fracassa ou mostra inaptidão para resolver os problemas que aborda. (RORTY, Richard. “Posties.” Review of Der Philosophische Diskurs der Moderne, by Jürgen Habermas. London Review of Books (September 3, 1987), 11–12). ^voltar ao texto

[3] PINTO MARGUTTI, P. O filósofo cordial como educador e autor. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/~margutti/Fil_sofo_cordial.pdf Consultado em 21/09/2008. ^voltar ao texto

[4] RORTY, Richard. O fogo da vida. Traduzido por Susana Amaral. Disponível em: http://gtpragmatismo.wordpress.com/2008/08/25/o-fogo-da-vida-por-richard-rorty/ Acessado em 20/09/2008. ^voltar ao texto

[5] GHIRALDELLI Jr., Paulo. O que sobrou dos frankfurtianos e dos “frankgutianos”? In: http://ghiraldelli.blogspot.com/2006/03/o-que-restou-dos-frankfurtianos-e-dos.html Cosultado em 21/09/2008. ^voltar ao texto

[6] Discuto melhor essa relação no artigo “Richard Rorty e a tarefa de traduzir nosso tempo em linguagem” que esta em ARAÚJO, Inês Lacerda & DE CASTRO, Susana (org.) Richard Rorty: filósofo da cultura. Champagnet: Curitiba, 2008. ^voltar ao texto

[7] O que pode ser um defeito de caráter para alguns: se eu tivesse criado um leitãozinho e tivesse com ele alguma identificação, provavelmente saber que ele ou um parente dele de mesma idade (menor de idade!) fora sacrificado para minha satisfação, provavelmente consideraria relevante essa diferença. Se descobrir que o bezerro que me dá minha bisteca light teve que ser mantido anêmico até o precoce abate para produzir meu prato, provavelmente me incomodaria. Se os horizontes de identificação moral mudam, as formas de agir se modificam e as diferenças que fazem diferença também se alteram. ^voltar ao texto

2 comentários:

  1. Muito interessante o texto... O diálogo é realmente sempre difícil... quase ninguém tem disposição de ser um "crítico de primeira fila" rss... dá muito trabalho...

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  2. é... obrigado pela leitura Dr. Murilo... esses posts grandes são sempre "inusitados"... mas são necessários... tomará que o professor responda!

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