terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Projeto Veneza

O Imperador estava inquieto. Depois do golpe do vice-rei ele sabia que nem tudo estava em seu lugar.

A ordem em GTI estava seriamente abalada. Oficialmente, tudo estava calmo e no mais absoluto controle. O Imperador, porém, sabia que era uma questão de tempo até que o caos tomasse conta da cidade. Algo tinha que ser feito.

O Imperador procurou pelo bêbado irônico mas descobriu que ele tinha sido designado para pesquisar novas formas de turismo no Rio. Procurou pelos punks mas eles não quiseram falar com o ele. O vice-rei agora não era mais o mesmo. Não poderia confiar em ninguém. Se pelo menos Melquiades voltasse...

O desespero tomou conta do nobre monarca de nossa imaginária urbe. Não tinha mais a quem recorrer. Resolveu sair para uma caminhada.

Saiu andando pela cidade, rumo ao centro geográfico de GTI. O Imperador caminhava lentamente. De repente avistou aquele prédio magnífico que ficava no exato centro da cidade. Foi então que ele teve uma epifania e correu em direção ao prédio1.

Era a Catedral de GTI. A Catedral de GTI era, ao mesmo tempo, um prédio magnífico e desinteressante. Era um prédio imponente, mas em nada lembra uma catedral. Mais parece um prédio (mal)desenhado por Oscar Niemeyer, porém com mais linhas retas. Ainda assim, é imponente e impressionante.

O Imperador adentrou a Catedral de GTI e lá encontrou, sentado sobre o banco mais à frente, o líder espiritual da cidade. Reza a lenda que a própria cidade de GTI cresceu ao redor dele, como um criador da cidade perfeita, em meio a um ritual místico das águas e das plantas. Esse mito explica a vocação da cidade para a agricultura. Porém, não passa de um mito. Todos sabem que a cidade, na verdade, cresceu ao redor do próprio Imperador, destinada a ser uma cidade turística.

Ninguém sabia ao certo o nome do guia espiritual de GTI. Todos o conheciam como o Monge das Águas.

-- Monge das Águas, o senhor pode me ouvir nesse momento? -- disse o Imperador.

O Monge não se mexeu. Permaneceu imóvel por vários minutos, de olhos cerrados. Parecia resmungar alguma coisa. "Deve ser uma prece" pensou o Imperador.

Depois de alguns longos minutos (pelo menos para o Imperador), o Monge abriu seus olhos, virou-se lentamente para o Imperador e perguntou:

-- O que deseja?
-- Desejo falar com o senhor...
-- Com o SENHOR? Faça uma prece e ele te ouvirá.
-- Não, desejo falar com o senhor, Monge das Águas.
-- Ah, sim. Mas só te ouvirei em confissão. Vamos ao meu confessionário.

O Monge começou a caminhar lentamente e fez um sinal para que o Imperador o seguisse. O Imperador seguiu o Monge, observando o interior da Catedral, ressabiado. Ele nunca havia entrado no confessionário do Monge e ouviu histórias amedrontadoras sobre o lugar. Enquanto caminhava nos corredores da catedral, tudo parecia escuro, vivo e ameaçador. O Monge parou em frente a uma porta e esperou o Imperador, que caminhava lentamente, observando tudo e visivelmente amedrontado. O monge deu um leve sorriso e abriu a porta.

O Imperador olhou para o interior do confessionário. Era uma sala simpática que em nada lembrava os confessionários tradicionais. Lembrava mais um consultório de psicanálise. Uma sala aconchegante, com algumas poltronas dispostas em círculo. Colocou a cabeça dentro da sala, como uma criança desconfiada. O Monge, já sentado em sua poltrona, maior e mais imponente, chamou o imperador para dentro.

-- Então, o que tão ilustre pessoa da sociedade geteiense deseja?
-- Eu estou perdido, Monge das Águas.
-- Não, primeiro você tem que rezar o ato de contrição.
-- Mas eu não estou me confessando, Monge. Desejo apenas conselhos. E, além disso, não sei essa oração.
-- Eu te disse que só te ouviria em confissão -- disse o Monge em um tom ameaçador -- repita comigo então.

O monge começa a recitar a oração, de forma meio robótica:
-- Meu Deus, eu me arrependo de todo o coração de vos Ter ofendido, porque sois tão bom e amável. Prometo, com a vossa graça, esforçar-me para ser bom. Meu Jesus, misericórdia!

Senhor meu Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, Criador e Redentor meu: por serdes Vós quem sois, sumamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas, e porque Vos amo e estimo, pesa-me, Senhor, de todo o meu coração, de Vos Ter ofendido; pesa-me também de Ter perdido o céu e merecido o inferno; e proponho firmemente, ajudado com o auxílio de Vossa divina graça, emendar-me e nunca mais Vos tornar a ofender. Espero alcançar o perdão de minhas culpas pela Vossa infinita misericórdia. Amém.


Depois de recitarem juntos o ato de contrição, pensando em suas palavras, o Imperador parou por alguns segundos e então disse:
-- Talvez seja melhor mesmo esse clima de confissão.
-- Pois não, prossiga.
O Imperador suspirou e continuou:
-- Eu não sei bem que rumo dar a GTI. Nem tudo está como deveria estar. A ordem não está estabelecida como antes... -- parou por alguns segundos -- Temo que eu não tenha força para reestabelecer essa ordem.
-- Do que você tem medo? O que te assusta?
-- Ah... eu acho que não consigo fazer isso sozinho.
O monge esperou alguns segundos e disse, em um tom acolhedor
-- Você está sozinho?
-- Sim, não tenho ninguém.
-- Porque você está sozinho?
Silêncio. O Monge prosseguiu, inclinando-se em direção ao imperador:
-- Você não pode contar com seus amigos?
Após alguns segundos de silêncio, desviando os olhos, o Imperador disse:
-- Posso... mas...
-- Então você tem amigos. Você pode contar comigo?
-- Sim... mas...
-- Então você tem a mim também. Você está sozinho?
-- Ah... Quer dizer... De uma certa forma...
-- Você está sozinho?? -- Perguntou o Monge em um tom mais forte
-- Não...
-- Com quem você pode contar?
-- Com meus amigos e com o senhor.
-- E com Deus?
-- É...-- disse o Imperador, sem muita confiança.
Alguns segundos de silêncio.

-- Então, você tem seus amigos... Tem a mim... Tem a Deus -- disse o Monge, com ênfase nessa última afirmação -- Você não está sozinho.
-- É. Mas me sinto só.
-- Quando se sentir só, lembre-se que tem amigos, que tem a mim, que tem a Deus... Que tem com quem contar... Que tem em quem confiar...
O Imperador não disse nada, só desviava o olhar. Continuou o Monge:
-- O que você deseja fazer daqui para frente?
-- Eu não sei. Não consigo desejar mais nada.
-- Porque você não consegue desejar?
-- Não sei... Acho que...
-- Você já teve planos?
-- Sim.
-- E qual era esse plano?
-- Na verdade, acho que era mais uma missão. Uma missão que hoje me parece mais absurda.
-- Que missão?
-- Bem... eu queria transformar GTI em uma cidade turística... Parece absurdo... Mas era meu projeto de vida... Uma missão sagrada.
-- Você não deseja mais isso?
-- Ah.. não sei... estou muito confuso.. depois de tudo o que ocorreu com o vice-rei...
-- Você diz que a sua missão é sagrada. Em que sentido ela é sagrada?
O Imperador pensa por cerca de um minuto, desviando o olhar, fixando em um jarro com flores em cima de uma pequena mesa no canto da sala. Não diz nada, mas parece que muitas coisas passam pela sua cabeça e ele não sabe qual escolher. O Monge apenas espera. Até que o Imperador resolve falar.
-- Eu acho... Eu não sei... Mas eu acho que essa missão me foi passada pelo próprio Deus.
-- Porque você não tem certeza?
-- Bem... eu estava bêbado... Estava com o Bêbado Irônico...
-- Entendo. Como dizem, Deus escreve certo por linhas tortas. Certamente essa é uma missão passada por Deus.
-- Sim mas eu... A minha mãe... O meu pai... -- Alguns segundos de silêncio. Lágrimas começaram a rolar no rosto do Imperador. O Monge estendeu-lhe uma pequena caixa com lenços de papel. O Imperador limpou os olhos, esperou alguns segundos e continuou.
-- A minha mãe e o meu pai... eram católicos... fervorosos... Eu não acreditava em nada disso... até que recebi essa missão divina...
-- Fale-me sobre sua mãe.

A conversa continuou, o Imperador contou toda a sua relação com sua mãe, com seu pai, de como ela era carinhosa e exigente com ele ao mesmo tempo e de como seu pai era autoritário... Por fim, o Monge deu o seu veredito.

-- Parece que a relação com a sua mãe era bem difícil... Para mim, parece que essa relação moldou muito a sua personalidade... E que você se sente em dívida com a sua mãe até hoje... mas o autoritarismo do seu pai te impede hoje de contar com a ajuda dos seus amigos e de prosseguir com os seus desejos...
-- É... acho que sim...
-- Porque você não tenta continuar com o projeto de cidade turística?
-- Mas vai ser muito complicado fazer isso sozinho..
-- Você está sozinho?
O imperador suspirou e disse:
-- Não.
-- Com quem você pode contar?
-- Com você e com meus amigos...
-- E com Deus...
-- É... e com Deus...
-- Já que é uma missão divina, sagrada, você deveria continuar.
-- É... faz sentido... Mas o que devo fazer então para continuar?
-- Bom... Qual a cidade que você mais gostaria de ir hoje?
O Imperador pensou um pouco. Encarou um relógio que estava ao lado do jarro.
-- Veneza.
-- Veneza! Muito bem... Podemos transformar GTI em uma nova Veneza então.
-- Como podemos fazer isso? Não dá para simplesmente inundar uma parte da cidade!
-- Ora, não me chamam de Monge das Águas por acaso... Escolha um dos lagos da cidade e deixe o resto comigo.
O Imperador parou novamente, pensativo. Qual lago escolher? E para quê? pensou no primeiro lago. Era o primeiro e mais bonito. E tinha o outro que era bem maior e longe da cidade. Mas o favorito era o outro. Aquele com o Museu em Homenagem ao Imperador! Era esse!
-- O do museu.
-- O do museu? Estranha escolha... Mas está feito... Pode deixar o resto comigo...
O Monge proferiu então a oração de absolvição dos pecados e depois disse:
-- Reze 5 Pai Nosso e 3 Ave Maria. E me deve 50 dinheiros.
-- 50 dinheiros? Por quê?
-- 25 é o que eu cobro por confissão e 25 por cada trabalho. Vá, faça suas orações de penitência e fale com o coroinha para marcar a confissão da semana que vem.
O Imperador saiu e fez como o Monge pediu (ninguém ordena nada ao Imperador), foi para o Palácio Imperial aliviado e esqueceu a conversa que acabara de ter.

Dias depois, uma forte chuva caiu, por dois dias e duas noites e, curiosamente, chovia apenas sobre o Lago do Museu Imperial. Devido às fortes chuvas, o lago transbordou e inundou aquela parte de GTI. As pessoas só podiam sair de suas casas de barco e o aspecto antigo das casas daquela região dava uma bela e familiar aparência ao local inundado.

O Imperador, observando pela janela de uma das torres do Palácio Imperial, abriu um largo sorriso. Parecia não caber em si de tanta felicidade. De repente, falou, sozinho:

-- A partir de hoje, GTI tem a sua Nova Veneza!



Notas:
1-
Como todos sabemos, ninguém sabe ao certo onde é tal centro geográfico. Alguns dizem ser o Palácio Imperial, outros a Caverna, há ainda quem diga que o CEFOD é o centro de GTI, mas o Imperador andava rumo a outra opção: a Catedral de GTI

Para mais informações sobre GTI, visite
http://cidadeimaginaria.wikidot.com/

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