segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Zeitgeist e a vontade de acreditar

Quando me mostraram o Zeitgeist, me disseram que o filme tinha grandes revelações bombásticas e irrefutáveis acerca de muitos aspectos da história humana.

A própria introdução aponta para essa direção e nos faz crer que apresentarão uma verdade irrefutável, que estivemos sendo "enganados" o tempo inteiro e que o objetivo dos "enganadores" (sempre Eles) é "dominar o mundo". E isso é dito literalmente, com todas as letras. Não poderia ser mais conspiratório.

É muito fácil chamar a atenção das pessoas com teorias da conspiração. Parece ser muito natural acreditar em OVNIs, organizações secretas dominadoras do mundo, lendas e superstições. Penso que é necessário olhar para essas coisas com um certo ceticismo pois, como dizia Carl Sagan, que é até citado no filme, eventos extraordinários requerem evidências extraordinárias (Sagan foi um dos principais cientistas defensores da busca de vida alienígena, apesar de não acreditar nos relatos de OVNIs descritos ao longo da história recente).



O filme Zeitgeist é dividido em três partes. A primeira parte, "The Greatest Story Ever Told" ou "A Maior História Já Contada" trata de uma análise do cristianismo. A segunda parte, "All The World's a Stage" ou "O Mundo Inteiro é Um Palco" apresenta uma suposta conspiração nos ataques às torres gêmeas nos estados unidos. A terceira parte, "Don't Mind The Men Behind The Curtain" ou "Não Ligue Para os Homens Detrás da Cortina" foca no sistema bancário mundial, que supostamente tem estado nas mãos de uma elite de famílias burguesas que detém o verdadeiro poder sobre todos os países a eles associados.

Pessoalmente, não consegui passar da segunda parte. Isso porque me incomodou bastante a imprecisão das informações apresentadas na primeira parte, que para mim comprometem a credibilidade do filme como um todo. A seguir, farei uma análise da primeira parte, que trata do cristianismo.

De um modo geral, a primeira parte do filme apresenta informações para corroborar uma teoria previamente elaborada (a de que Cristo seria uma colagem de várias outras mitologias e teria origens astrológicas), ocultando, quando conveniente, informações valiosas que poderiam levar o espectador a tirar outras conclusões que não as apresentadas no filme. Para mim, há uma grande confusão quando não fizeram uma separação entre o que é de origem bíblica, o que vem da tradição católica e o que se originou da tradição popular cristã.

No início da primeira parte, é apresentado um resumo da história do deus egípcio Horus. O resumo é o seguinte:
  • Nasceu em 25 de dezembro de uma virgem
  • Uma estrela proclamou sua chegada
  • Três reis vieram adorar o recém nascido "salvador"
  • Começou a ensinar aos 12 anos
  • Aos 30 anos foi "batizado" e começou seu "ministério"
  • Teve 12 discípulos
  • Foi traído
  • Foi crucificado
  • Foi enterrado por três dias
  • Ressuscitou após três dias
Essa descrição parece ser exatamente a de Jesus Cristo. O filme apresenta essas afirmações sem nenhuma referência, como se fosse fato que essa é a história de Horus. Porém, no mínimo, essa história não é um consenso. Na verdade, há bem poucas referência importante que a corrobore tal qual é posta no filme.

Mas, supondo ainda que essa seja mesmo a história de Horus, os autores do filme "misteriosamente" ocultaram alguns detalhes importantes.
  • Em nenhuma parte da bíblia é dito que Jesus nasceu em 25 de dezembro. Essa data foi adotada pela igreja católica, pelo Papa Júlio I, no ano 350 pouco depois de o Imperador Constantino instituir o Cristianismo como religião oficial do império romano, justamente para que os seguidores das religiões pagãs adoradoras do sol pudessem se converter ao cristianismo sem ter que mudar muito os seus costumes. Então, não é de se espantar que a data seja a mesma.
  • A história dos três reis magos (que é citada por muitas vezes no filme) não tem fundamentação bíblica. Não consta em nenhuma passagem bíblica o número de sábios que foram visitar o menino. Em Mateus 2:1 encontramos "Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente a Jerusalém", e esse é o único evangelho que cita o fato. Os três reis magos tem origens na tradição popular e nada tem a ver com o Jesus bíblico e não condiz, portanto com as três estrelas do cinturão de órion.
  • O batismo é uma tradição judaica, criada muito tempo depois do mito de Horus. Ele não poderia, então, ter sido batizado. Mesmo que tenha passado por algum ritual parecido, chamar esse ritual de batismo só pode ter um intuito: confundir, e não esclarecer.
Mesmo eliminando esses tópicos, parece haver ainda muita semelhança nas histórias de Jesus e Horus. Porém, as outras afirmações acerca do Deus egípcios não resistem a uma pesquisa mais rigorosa. Até onde eu consegui apurar, Horus não nasceu de uma virgem, não há relatos de nenhuma estrela que tenha proclamado seu nascimento, Horus teve 4 seguidores, não foi traído nem crucificado, nem esteve enterrado por três dias, nem ressuscitou. Talvez haja referências sérias e amplamente aceitas que corroborem as afirmações do vídeo (que não sejam, é claro, textos conspiratórios da internet ou textos criados a partir do filme), mas o importante é que, pelo menos, não há consenso sobre nenhum dos fatos destacados sobre a suposta história de Horus e, mesmo que existam tais referências, o filme apresenta Horus de uma maneira imprecisa e tendenciosa, a fim de "alinhar" os fatos para a conclusão que querem tomar.

Outros erros grosseiros do filme podem ser apontados na descrição dos outros deuses, como por exemplo Krishna, que não nasceu de uma virgem, mas da princesa Devaki e seu marido Dasudeva e Dionísio, que não nasceu de uma virgem, mas da união de Zeus com uma mortal. Nenhum dos deuses citados no filme parece corroborar a teoria levantada de que compartilham a morte na cruz e ressurreição depois de três dias.

No vídeo, apresentam o peixe como símbolo cristão está relacionado com a era de peixes. O uso do peixe como símbolo do cristianismo começou com a igreja primitiva, e foi adotado porque a igreja primitiva era perseguida, mantendo seus encontros secretos, e precisavam de um símbolo para marcar onde seriam as reuniões secretas de culto. Utilizaram um acrônimo, no grego antigo ICTUS (peixe, no grego), para Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. Essa é apenas mais uma de muitas explicações possíveis para a adoção do símbolo.

O filme afirma que, em Lucas 22:10, Jesus disse, em resposta aos questionamentos dos discípulos sobre o que fazer quando Jesus tiver partido, que os discípulos procurassem um homem com um cântaro de água. Segundo a interpretação do filme, o homem representaria a era de aquário, que se seguiria à era de peixes, que seria representada por Jesus (ou seja, viria após a partida de Jesus). Na verdade, a pergunta dos discípulos que resultou nessa reposta foi essa: "Eles lhe perguntaram: Onde queres que a preparemos [a páscoa]? Então, lhes explicou Jesus: Ao entrardes na cidade, encontrareis um homem com um cântaro de água; segui-o até à casa em que ele entrar e dizei ao dono da casa: O Mestre manda perguntar-te: Onde é o aposento no qual hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?" (Lucas 22:9-11), ou seja, não tem nada a ver com o que os discípulos devem fazer depois da partida de Jesus. E essa, segundo o filme, é a passagem mais reveladora das referências astrológicas. A interpretação dada no filme não faz muito sentido quando se lê a passagem completa.

Minha intenção aqui não é fazer uma defesa da igreja ou do cristianismo. Acredito que muitos outros aspectos do filme poderiam ser contestados por pessoas com maior conhecimendo de mitologia e teologia, já que não sou nenhum especialista nos assuntos. Penso que muitas coisas devem ser esclarecidas no que diz respeito à religião, especialmente do cristianismo primitivo e da formação da igreja, da seleção dos textos canônicos etc. Se há uma manipulação dessa magnitude, onde estão os manipuladores? Quem são "Eles"? Não acho que com mentiras, informações imprecisas e confusões é possível prestar algum esclarecimento, e muito menos, como pretende o vídeo, chegar "à verdade". Um assunto tão delicado deveria ser tratado com mais cuidado, seriedade e responsabilidade e deveria exigir, pelo menos, uma pesquisa mais bem feita.

O que mais me impressiona, porém, é a repercussão que o filme teve, mesmo carregado de informações falsas, facilmente verificáveis como tal. O filme que se dá o objetivo de "libertar as pessoas pela verdade" acaba confundindo através de mentiras mal costuradas. Parece haver uma vontade irresistível, uma necessidade das pessoas de acreditar em teorias conspiratórias, e essa necessidade parece ser tão forte que quando tais teorias são apresentadas, não parece necessário checar nenhuma das informações: a verdade foi revelada.

Penso que é importante questionar, mas antes de confiar é preciso desconfiar. Querer acreditar não deve significar acreditar cegamente, mas questionar sempre. Não deveria a verdade (se existir) resistir aos questionamentos?

Algumas referências interessantes:


A Tretalogia de Zeitgeist: o efeito 'red pill'
Zeitgeist: Dan Brown vestiu as cuecas de Michael Moore
The Leading Religion Writer in Canada ... Does He Know What He's Talking About? [eng]
Is there any validity to the Zeitgeist movie? [eng]
Zeitgeist -- perspectivas
Natal: Por quê 25 de dezembro?
Wikipedia: O primeiro Concílio de Nicéia
Wikipedia: Horus [eng]
Wikipedia: Krishna [eng]
Wikipedia: Dionysus [eng]
Wikipedia: Ichthys [eng]

2 comentários:

  1. Aíiiiiii murilo começando bem este pequeno espaço onde nós que gostamos de ler podemos nos repousar um pouco e nos aliviar com temas interessantes...
    muito sucesso no seu blog e não desista dele....

    Tertuliano

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  2. Obrigado, tertu... não sei se me encaixo muito em "quem gosta de ler", mas certamente gosto de discutir assuntos interessantes. Acho que aprendo mais com vídeos do que com leitura... e leio mais na internet do que livros... mas tá valendo, né... leitura é leitura... abraço...

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