segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Ouvindo Utopias

o filósofo autodidata brasileiro (tcheco naturalizado) multiplicando perspectivas


“Já sem se sentir cansado, Henry se afasta da parede onde estava recostado e caminha para o meio do auditório escuro, na direção da grande máquina de som. Deixa que o som o envolva. Existem esses raros momentos em que, juntos, músicos atingem algo mais doce do que tudo que já obtiveram antes, nos ensaios e nas apresentações, algo além da mera competência técnica e cooperativa, quando a expressão deles se torna tão fácil e elegante quanto a amizade ou o amor. É então que nos proporcionam um relance do que poderíamos ser, do que temos de melhor, e de um mundo impossível em que damos para os outros tudo o que temos, mas sem perdermos nada. No mundo real existem planos minuciosos, projetos visionários de reinos de paz, todos os conflitos resolvidos, felicidade para todos, para sempre – miragens em nome das quais as pessoas estão dispostas a morrer e matar. O reino de Cristo na terra, o paraíso dos trabalhadores, o estado islâmico ideal. Mas só na música, e só em raras ocasiões, a cortina, de fato, se levanta para esse sonho de comunidade, e ele é evocado de forma fascinante, antes de se dissolver junto com as últimas notas”.[1] 
Este trecho do romance Sábado do escritor britânico Ian McEwan fala de uma utopia estética passageira, porém marcante, que só seria possível pela música. A canção seria capaz de nos transmitir uma forma de harmonia e sentimento de identificação que faria com que, por instantes nos sentíssemos congregados em uma comunidade unida por um sentimento fraterno de amor ou de amizade. Aqui a palavra Utopia adquire um sentido não-usual, já que, de Thomas Morus a Karl Marx, esta forma de ideal sempre pede a anulação do "eu" em favor de um "nós" que se espera construir. A teoria utópica fundamentaria essa nova realidade. O tipo de utopia que o trecho de McEwan parece propor não tem letras maiúsculas, não pede este apagamento do "eu", mas seu prolongamento, numa perspectiva que poderíamos chamar de lírica (seguindo Emil Staiger e o trabalho de Renato Janine Ribeiro sobre Chico Buarque de Hollanda) ou liberal (tomando por referência Richard Rorty). Assim, teríamos não uma Utopia fechada em uma Teoria que deveria ser realizada, mas sim, uma forma de esperança, uma fé que pode servir de inspiração, mas não trás todas soluções e respostas definidas. Uma experiência como a descrita no trecho citado, faz crer que a cooperação que os músicos conseguiram para realizar sua arte poderia ser prolongada para a sociedade.
McEwan sabe que as pessoas geralmente não vão concordar sobre quando e onde esse tipo de experiência aconteceria: para alguns na música, outros na dança ou no esporte, outros a partir da literatura etc. Há ainda os que não acreditam talvez nem acreditem que tais momentos de utopia lírica sejam  realmente factíveis.  Para que se conceba a possibilidade do evento descrito por McEwan é preciso aceitar que a música proporcionaria uma espécie de de experiência religiosa. Porque, se real é aquilo no qual acreditamos, o “senso de realidade” não deixa de ser, como ensinou Vilém Flusser, sinônimo de “religiosidade”.[2] A palavra religião significa algo que nos religa a realidade, que nos faz retomar o sentido do mundo, a canção seria um forte instrumento para promover esse tipo de sensação. Mas, o que hoje formula nosso “senso de realidade”? Durante muito tempo nosso "senso de realidade" foi moldado por livros sagrados, que para sua divulgação por meio das religiões, utilizavam (e utilizam) a arte como forma de apresentar sua descrição da realidade como o Real. A crença em livros sagrados nos oferecia um fundamento da Realidade. Hoje  tal descrição não se sustenta, já que com o desenvolvimento técnico-científico a crença de que alguma obra poderia conter dentro de si todas as respostas perdeu força (ou teve seu sentido deslocado). Cotidianamente não são mais estes livros que formulam o que aceitamos como factível. Nosso senso de realidade é alimentado tanto pelo desencantamento promovido pela ciência, quanto por imagens na televisão, no cinema, na internet, em canções, em jogos de videogame, na literatura de auto-ajuda etc. De tal forma que as crenças são cada vez mais contingentes e menos "sagradas"., sem a aura de algo imaculado que justificaria nossa existência com uma resposta definida. Alguns vêem nesse contexto a formação de uma impossível sociedade de ciclopes, que com o empobrecimento da percepção cotidiana de Realidade, se conduzem cada vez mais através de perspectiva egoistas e tacanha, sem o vinculo, o compromisso com o que é comum. Os laços de amor e amizade não são tomados como parte efetiva da vida social a não ser como miragens. 
Para Flusser “somos seres em transição e em busca do futuro”, na medida em que “com nosso intelecto ainda somos modernos, mas com nossa religiosidade já participamos de uma época vindoura”[3]. O anúncio de Flusser de uma época vindoura, tráz uma utopia teórica que pode parecer irrelevante para muitas pessoas que acham esse “papo de filosofia” mais “conversa fiada”. Estes preconceitos de principio não devem ser empecilho para que aprendamos a dar de ombros para as diferenças e promover formas de convivência em que possamos respeitar e aceitar as escolhas e crenças de outras pessoas. O trecho descrito por McEwan justifica uma utopia fraca, que nada mais sustenta do que a inspiração para pensar neste projeto como algo comum. Vale a comparação entre a religiosidade, musicalidade e filosofia: existem pessoas mais e menos aptas para buscar o sagrado, existem pessoas com maior ou menos aptidão para tocar um instrumento ou apreciar sons, assim como, pessoas que tomam questões filosóficas como fundamentais e outras que as acham irrelevantes. Por isso, independentemente de onde encontremos os momentos poéticos de nossa vida, algumas pequenas coisas podem aumentar nossa fé nessa possibilidade de utopia de convivência hospitaleira para com as diferenças. Nestes momentos, que são sempre um desafio para a linguagem, aceitamos que conviver é caminho para crescermos, para nos tornarmos melhores e mais sensíveis para com a dor de outros. Então preferências musicais, religiosas, filosóficas etc., são irrelevantes porque o sentimento de simpatia faz com que leiamos com amor a presença do outro, como quando namorados seguram as mãos e com este gesto, com um olhar, sabem se entender e inventam caminhos e prazer em viver juntos.

P.S: A Carmélia leu a primeira versão do meu texto e teve o carinho de mostrar como estava confuso, fez sugestões e inspirou a tentativa de reescrever e tentar ser menos leviano. Obrigado pelo cuidado de inventar sentido para meus mal entendidos!



[1] McEwan, Ian. Sábado. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.208.
[2] FLUSSER, Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002. p.13
[3] Idem. p.21.

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